terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Enucleadores

Pode se horrorizar, irmão: gosto de programas de psicopata, tanto verídicos quanto ficcionais. Evidentemente (espero que evidentemente) não tenho a menor tendência para a psicopatia; sou pouco sentimentaleira por motivos de introspecção, desajeitamento e superego, mas não CONCEBO como alguém possa desamar gratuitamente – e o que há de mais pavoroso: ter gratuito prazer em causar dor. Céus, fico um dia inteiro me açoitando mentalmente se falo mais grosso com um aluno. O simples fato de não conceber atrocidades, porém, é a exata garantia para curtir essas séries, como um salvo-conduto (“oooolha como eu e meus amigos somos legais, nunca seríamos capazes de cometer umas tais aberrações”). Mas há outros porquês. Um deles: prefiro esperar o melhor sem deixar de conhecer o pior de nossa espécie, para entender, para identificar os prenúncios. Um segundo motivo, e mais assustador que os monstros mesmos: vendo programas de psicopatas longínquos – que matam lááááá nos Estados Unidos ou mataram há muuuuuitas décadas –, a gente deixa o terror igualmente distanciado, canalizado, redomizado. É tanta e tão extrema a malvadeza desse povo que vira troço irreal, e mesmo o que não é ficcional parece sê-lo. Aí vem a razão essencial: assistimos a tudo sob a promessa de segurança das paredes ar-condicionadas que nos abraçam.

Não se assustem, portanto, de eu não me assustar com episódios (televisivos) de gente mergulhando gente em ácido, fazendo peruca com cabelo de gurias assassinadas ou enucleando os outros por esporte (sim, tem psicopatia que cisma até de arrancar os olhos alheios). São estapafurdices isoladas, improváveis, coisas de Jigsaws específicos. Mas quer me deixar 100% doente d’alma? No Brasil atual, tá moleza: me exponha à perversão sinistra, kafkiana, enraizada e coletiva que se tornou esta distopia de fazer Orwell babar de inveja. Me mostre a náusea de um sistema criminalizando ex-presidentes – legítimos – por um certo manejo e aplaudindo “presidentes” golpistas pelo mesmo manejo. Me esfregue na cara um projeto sugerindo ensinos em que História e Geografia não sejam perenemente obrigatórias (e uma propaganda exibindo vítimas que vão para o abate sorrindo de orelha a orelha). Me obrigue a ver manifestações em que aposentados apanham por não receber, em que professores e médicos levam bala e gás por não quererem ser duplamente descontados. Me soque no queixo com uma chantagem emocional pública, falsa, repugnante, nojenta, um pretexto imundo para privatizar apenas a água –  a.k.a. o maior bem e maior recurso do terceiro milênio. Me faça vomitar com campanhas em que trabalhadores de ar-condicionado (e de expediente terça-quarta-quinta, e de auxílio-paletó, e de gorda aposentadoria após menos de uma década) convencem fofamente o lavrador que trabalha desde os onze a achar top se aposentar depois dos 65. Me ponha diante desse nível repelente, torpe, asqueroso de deformidade humana, próxima e pairante, e aí sim – aí sim encarnarei a mocinha de Thriller, com gargalhada em off mas sem fim de pesadelo.

Vou te contar: o que os meus e os seus olhos já não podem ver é exatamente o que devem. O que precisam. Não tem FBI que resolva coisas que só nossa união pode deter. Fundamental, infelizmente, é que seja generalizado o horror: é impossível fazer a revolução sozinho.

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