quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Magnum opus

Abro aspas para o escritor americano Henry David Thoreau: “As nações são possuídas pela louca ambição de perpetuarem a sua memória com a soma das esculturas que deixam. Que tal se esforços semelhantes fossem despendidos no sentido de aperfeiçoar e polir a sua conduta? Uma obra de bom senso seria mais memorável que um monumento da altura da Lua. Prefiro contemplar as pedras no seu local de origem”.

É verdade que Thoreau, ao publicar sua autobiografia poética e filosófica Walden, em 1854 – livro onde mora o trechinho aí de cima –, narra seu mergulho cabal em algo que, para os árcades, era só fingimento literário: uma vida retirada e florestal, simples, sem luxos, com móveis e imóveis feitos com as próprias mãos; uma espécie de Capitão Fantástico way of life. É verdade também que poucos de nós iríamos tão longe; eu mesma sou exemplo de quem adora cinemas e farmácias sempre à mão (embora inveje loucamente os dois anos em que o autor viveu plantando seus amigos, seus discos – se houvesse discos – e livros, e nada mais). Mas apesar do radicalismo de Thoreau e da improbabilidade de seguir sua entrega e seus passos, não desreconheço o quanto me toca sua observação sobre as construções, sobre as esculturas. Uma coisa é simpatizar com as comodidades básicas; outra, diferentíssima, é dar glórias ao cimento, é identificar evolução e cultura com as toneladas mortas de granito e mármore que constroem uma cidade grande.

Cidade não pode aparecer grande na estrutura e ínfima em ser-humanidade. Escolas, hospitais, habitações frescas e boas são paredes obrigatórias, ninguém discute, mas no mais é preciso evitar tijolos antes de se edificarem ideias. É preciso que a alma dos teatros palpite no que é intenso e filosofável, e não apenas na ostentação do patrocínio ou na curiosidade da moda. É necessário que as estátuas dos parques estejam abençoadas pelo afeto público, não somente pelo vazio respeitador ou pelo olhar que não picha, mas também não enxerga. É fun-da-men-tal que as assembleias, tribunas, prefeituras não sejam acarpetadas de salas impenetráveis, de corrimões veneráveis e hostis, mas sejam sim tomadas pelo povo, feitas de povo, transbordantes de povo por veias e artérias. Museus devem ser baús de memória rendada, carinhosa ou difícil, mas afetiva sempre, como histórias de avós – e não templos de intocabilidade e símbolos de chatice ritual. Universidades e mecas de eventos devem ser debatódromos. Igrejas devem sobretudo ser roçados de amor, e não novos santuários de dinheiro. Secretarias têm a obrigação moral de nos ser secretárias. Bibliotecas – nossos parques de diversão. Shoppings – nosso ar-condicionado gratuito, acolhedor a todos que compram ou não compram.

Não adianta, ó caros, ter massa urbana bonita e dourada se o recheio não for de gente. Acaba só ficando para nós um bruto mar de concreto cercado de ilhas por todos os lados. 

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