terça-feira, 21 de março de 2017

Preguiça de realidade

Hoje é um daqueles dias: preguiça de realidade. Não quero dizer que esteja ainda mais desiludida ou enraivecida com os mais recentes estupros ao Brasil (estou tão desiludida e enraivecida como sempre), nem que deseje me afastar dos noticiários mais do que de costume (desejo me afastar dos noticiários com a persistência rotineira). É, em todos os sentidos, mais prosaico: a realidade mais pratiquinha, mais imediata que me chama não está sendo convincente; estou embotada, apalermada diante do cesto gordo de roupa suja, das redações que solicitam correção, do bolo de notas fiscais que já anda fazendo rave na zoeira da bolsa, das provas a serem malevolamente feitas, dos projetos de aula a serem averiguados, das toalhas a serem engavetadas. Hoje quero engavetar tudo, mas na metáfora. Quero ignorar – mais que isso; nada posso além de ignorar, já que o olhar está exausto, zumbizado, perde o foco sozinho, escorrega para o nada, parado e inútil. Por quê? Porque há um romance a ser lido, grande, suculento, e não muitas vezes acontece de a paixão por quem habita a história ser tão profunda a ponto de nossa bateria mental ali se dissipar.

Agarrei o Norte e Sul de Elizabeth Gaskell – escritora inglesa dos mil e oitocentos, BFF de Charlotte Brontë – e fui tão ou mais agarrada por ele, especialmente pelo amor febril mas até então desesperançado de John Thornton. É fato: se nos apaixonamos pelo herói, não é que isso simplesmente nos leve a ignorar tudo o mais e sucumbir à história; é sinal, sim, de que a história é bem contada, ou do contrário não haveria sofrimento artificial que nos seduzisse. Temo pelo terço final da narração, uma vez que a autora se desculpa de antemão pelo desfecho meio precipitado (produzido originalmente para urgências de folhetim), porém tenho passado deliciosos dois terços junto ao pensamento cristalino de quem descreve tons emocionais com precisão, deita em palavras puras os cantinhos que nos povoam. Nas frases de Mrs. Gaskell raramente me distraio, dificilmente careço relê-las, porque são limpas logo à primeira vista e me convidam à frente em vez de servir de âncora. A desvantagem é que todo o interesse prático da vida se esvai, a mente consciente entra em motim contra os afazeres que assombram; pouco somos nós e estamos em nós num affair literário assim, doce, explosivo, desagradavelmente capaz de esfumaçar todos os prazos reais.

Sei da bagunça funcional que isso acarreta, mas hoje é Dia dos Namorados simulado, como acontece todos os dias em que um entusiasmo artístico nos dementa. Hoje – no restinho de hoje – recuso chamadas, não brinco no Face, faço careta pras decisões que peçam mais de 11 neurônios, não escolho nem a cor da próxima esponja da cozinha. Hoje quero me espreguiçar nessa languidez de férias, nesse intervalo sonolento mas ardente, porque arde de afetos em outras eras.

Hoje não haja verdades. Só as que se esqueceram de acontecer.

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