sexta-feira, 10 de março de 2017

Sede

Uma vez uma amiga perguntou no que eu era voraz, em termos de alimentação; e sinceramente, quanto aos sólidos, eu não soube responder. Daquilo em que poderia ser voraz, se eu fosse composta de id e canalhice – batata frita, por exemplo –, acabo nem passando perto, porque superego e consideração pelo fígado me cabrestam. Mas líquido, sim; líquido está na ordem do dia, e o calor sudanês do Rio, combinado com remédio que o agrava, exige litros e litros de água, mate, suco, achocolatado sem lactose, mais água, mais água, mais água, mate, mate, mate, mate. Uma fúria. Nunca fui tão voraz como agora, a ponto de já sair com mais de uma garrafinha a tiracolo, mas “a verdade é que sempre tive sede” – frase clássica do protagonista sonhadorzão de Big fish, um dos filmes queridos. Sede de coisa doce, saborosa. Não necessariamente das que cabem no copo.

Preciso de amenidades, digamos. Não adiantava Mãe fazer calendário de estudo para ajudar a me organizar nos tempos de eu menina; podia até ir pro quarto com o livro, mas (a não ser em desespero de véspera) passarinhava, passarinhava mentalmente, sonhava tecer uma casinha de folhas, planejava alguma espécie de renda rústica, ruminava situações de escola, escrevia história e poema, lia um milhão de linhas que não estavam no currículo, tramava o casamento de algum brinquedo, ficava simplesmente horas e horas esquecida da obrigação sem no entanto esquecê-la, apenas procurando um caudal de agrados e levezas para atenuá-la. Não deixava de fazer dever, não deixava de tirar nota boa, só não tinha disciplina para entrar na gaiola mental mais que o estritissimamente necessário. Dava a César o que era de César com toda a responsabilidade (no final das contas) e zero prazer: o estudo me era e continua sendo frio, chato, com cheiro e gosto de couro e madeira, como gabinete de trabalho quatrocentão. Minha sede estava além desse insosso e inodoro, com exceção de Português, Inglês, Artes, História – matérias úmidas; minha sede era de belezas e liberdades vagas, nuas de números, conceitos e fórmulas, belezas que nada tinham a ver com internet e traquitanas então inexistentes, e sim com psicologia, produção de coisas legais, planos infalíveis de dar presente (sempre adorei dar presente), narrativa, Sítio do Pica-Pau Amarelo, mitologia, cor, planta, pedrinha transparente do jardim. Que me deixassem, que não me interrompessem: eu sofria, chorava, me angustiava com o horror da prova iminente, mas no fim dava certo e eu só queria estar livre para meu infinito particular, grande demais para se desperdiçar espaço com o que não sacia.

Nisso não mudei. Nada. Mudei as sedes, permaneceu a Sede. O mesmo exterior caxias, o mesmo passarinho por dentro, agreste, rebelde, conciliável só com o mínimo de jaula social. Trabalhar o que é preciso, com honestidade e sangue, mas sem uma única hora-aula além do contrato; cuidar da casa o quanto ela solicita, não mais; não ter carro, não ter filho, não ter bicho, não acrescentar despesa, não plantar âncora onde não mora o coração. Era eu criança, salivava a semana inteira pela pracinha de domingo, o balanço, os cavalitos; adolescente, salivava o ano inteiro pela doçura irrestrita das férias; adulta, salivo a vida inteira pela vida mesma, que linda!, metida em cada canto e fresta, onde puder se encaixar, flexivelmente, sem essa de ter horário certo para happy hour. A sede eterna e cada vez mais larga da montanha-russa, mais forte, mais rápida; sede dos lugares novos, dos sebos, dos cantinhos, dos mercadinhos, das fofurinhas de outros países, do ar feliz que se respira ao sair do hotel pela manhã; sede de paladares novos, pratos que passam a ser opção, maravilhas que a língua não mais rejeita e ainda pede; sede de alternativas, de respostas, de argumentos, de meios de convencer quem está imerso em burrices; sede de silêncio, do fim das conversas ocas, da extinção da histeria; sede de escuta, de olhos que veem e ouvidos que reparam, de bocas que só falam depois que interpretam; sede de desipocritização, higienização coletiva de caráter, reversão de lobotomias, limpeza de comunicações; sede de lucidez, clareza, franqueza límpida, intenção translúcida. Sede do que é transparente. Bom.

E já que esbarramos em transparência de coisa boa: um brinde a e feito com o mais simples e disputado dos drinques; que continue existindo para hidratar e conduzir a inquietude das demais gerações. Cheers!

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