domingo, 9 de abril de 2017

Dar um brevê

Concordar que os outros voem: há nada mais difícil? Deixá-los voar, em nosso coraçãozinho doente mas compreensível, significa nos fazermos desnecessários, e todos sabem que não queremos realmente cumprir a missão: queremos tê-la. Se filhos, amigos, parceiros ganham tutano de voar sozinhos, automaticamente viramos nós os desacompanhados, os que esperam no ninho, os que já fizeram o serviço e precisam de novo mote para a agenda, os que devem buscar nova história, os que receberão as novidades ao mesmo tempo que os ilustres conhecidos e não mais com o selo VIP da primeira mão. Não é tranquilo admitir, não é bonitinho nem fica bem no currículo – mas há preguiça em muito de nossa generosidade, já que é frequente nos ancorarmos e escorarmos na dependência alheia por total cansaço de descobrir o que mais nos chama.

Quando professores, temos sim alguma dor de ver os ex-alunos caríssimos falarem de seus professores mais atuais, ainda que no nível seguinte, ainda que na faculdade – porque um trechinho possessivo de nós os deseja nossos eternos protegidos, nossos apegadinhos, mergulhados em dúvidas que ajudamos a sanar, recém-inaugurados no caminho que lhes começamos a abrir. Quando confidentes, sentimos carinhoso ciúme de pilhar nossos aconselhados finalmente bem, finalmente livres dos tormentos velhos, pois com os tormentos velhos parece que vai embora a carência de nós, rompe-se o preciso laço que nos unia. Quando pais, ó céus! eu que não sou mãe apenas suspeito da orfandade vivida em se encerrando nossa onipotência. Ainda ontem cortávamos o bife para o Asdrubalzinho, ainda na semana passada éramos só nós que sabíamos compor a trança da Godofredinha, ainda este mês nosso sanduíche era o único que prestava na hora da merenda, nossa leitura pré-sono era a única que fazia direito as vozes das princesas; em que momento e com que licença essas criaturas, que não sabiam colar um band-aid, resolveram viajar com os Médicos sem Fronteiras? em qual esquina deixamos de ser fundamentais para passar a roupa daqueles seres que agora morarão sozinhos – em Amsterdam? em que instante ficamos descartáveis? limitados? mortais? humanos? comuns?

Sim, nosso amor racional quer que os amados se ampliem, se curem, se joguem no mesmo imenso azul que ambicionamos, ótimos e estáveis. Mas nossa imitação 1,99 de amor – versão pirata, de bateria mole, parasita e grudenta – não quer celebrar sucessos, quer simplesmente guardar o outro em sua fraqueza que nos engrandece por comparação, ou que nos reclama por necessidade. Não significa que sejamos monstros horríveis; quer dizer meramente que talvez não sejam (apenas) nossos amadinhos os carecidos de ajuda. Se chegamos a ser visgo e não trampolim, se nosso impulso é esconder e não encorajar, se somos chantagem em vez de clareza, problemas na área. Possivelmente somos nós tão prisioneiros quanto aprisionadores, e nós os mais precisados de consulta, mesmo que não estejamos empalhando passarinhos no Bates Motel.

O amor, por natureza, é leve. Não afoga, não tolhe, não prende, não pesa com a presença. Se principia a dar dor nas costas é porque existem tumores e temores para remoção. 

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