sábado, 1 de abril de 2017

É-se o tudo

Uma das falas estonteantes da estonteante Clarice, em Água viva, bem nos explica: “Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. Aliás uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo”.

E por isso, ai de nós, há a ferida que não adianta costurar porque reabre e ressangra; há essa falta de paz contínua que nos invade no churrasco, nos sacode na academia, nos soca na sala de aula – mesmo com todo o brigadeiro, todo o conforto, todas as contas pagas, toda a Netflix, toda a serotonina, está lá a hemorragia emocional, ou um só arranhão, ou uma até culpa de felicidade que deixa a gente com cara de fratura exposta. Por isso: porque somos o tudo. Quando saio para a padaria, um meu fragmento se apaixona do cheiro da fornada, outra parte se abala com a inflação, uma terceira e uma quarta se chocam com a magreza do mendigo à porta, a quinta não quer dar dinheiro por prudência, a sexta pensa cadê a família, sétima e oitava choram encolhidas, outras tantas salivam com os doces, outras algumas sentem remorso de não levarem guloseima para os amigos, outras enfim estão mais amantes do tom vanilla do céu do que do cheiro da fornada. E corre ao mesmo tempo esse tudo, porque somos tudo – o relatório que falta e a prova a ser feita, o fim de semana próximo e o passado, o comentário da colega e o presente do sobrinho, o #ForaTemer e o nojo dos preconceitos, o medo de assalto e a cólica do segundo dia; somos esse caos com perninhas que na verdade não dorme, por não haver fronteira onde o sol se ponha. Não há jeito, em vida, de a gente se aquietar e terminar de ser, já que tudo nos constrói.

Quem nasce desses andaimes? Alguém que nunca viu neve e se projeta numa cena de cartão de Natal, alguém que não sabe francês e suspira ante flagras parisienses sem legendas, alguém que não consegue pegar no sono porque viu um passarinho morto, alguém que descobre parecenças tão grandes com um autor do século XVII que lembram ramos da mesma árvore, alguém que se abala com a partida de um vizinho que nem conhece direito, alguém que não sabe por que um coral judaico o atinge de lágrimas até a última fibra, alguém que pressente conexões inexplicáveis, adivinha sensos partilhados, capta aflições e contentamentos coletivos. Ficamos assim: presos numa rede em que o mínimo esvoaçar de mariposa nos influencia – e quanto mais o tempo nos desbasta e sensibiliza, mais expostos e coletivos nos tornamos; mais nossas anteninhas de vinil recolhem vidas no entorno, e as adentram e as sofrem.

Por que noss’alma constantemente deseja e se espanta? Porque tem saudades dos outros retalhos que ficaram subentendidos em suas costuras.

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