quarta-feira, 5 de abril de 2017

Essas canções que me renegam

Há um poema lindo, lindo (qual não é?) de Alberto [Fernando Pessoa] Caeiro, no qual o eu lírico declara que determinadas canções “separam-se de tudo o que eu penso,/ Mentem a tudo o que eu sinto,/ São do contrário do que sou...”. Por quê? Porque “escrevi-as estando doente [...]./ Estando doente devo pensar o contrário/ Do que penso quando estou são. [...]/ Devo sentir o contrário do que sinto/ Quando sou eu na saúde [...]./ Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.// Por isso essas canções que me renegam/ Não são capazes de me renegar/ E são a paisagem da minha alma de noite,/ A mesma ao contrário...”. A paisagem da minha alma de noite! nem sei dizer quanto essa boniteza de expressão me calou fundo. Só P’soa para nos esquadrinhar o que somos, quando não somos nós: nós mesmos sob outra luz, nós mesmos doentes, nós mesmos ao contrário.

Temos mania de nos defender aflitamente – não era eu, não penso realmente dessa forma, não estava em mim. Sem querer bancar o inquisidor-mor ou a diretora de colégio interno de época: duvido. Onde estamos quando “não estamos em nós”, a não ser que lobotomizados ou reprogramados mentalmente sob influência de droga braba, de fato braaaaaba? Doentinhos, com sono, com raiva, com febre, sob efeito de xarope ou antialérgico, de cerveja ou de vinho – somos nós sim, em outra estação do ano, em outro clima, com a alma vestida de outra cor, com outras vontades, até outros gostos. Porque não são outros eus; são eus secundários, terciários, alternativos. O fato de não serem o eu controlado, conveniente, selecionado e principal pode eventualmente nos eximir de algumas culpas (culpas estão ligadas a escolhas, e os eus que escapam das CNTP nem sempre estão em situação de escolha), pode nos alcançar perdões, mas não muda outro fato: temos Mr. Hydes em nós. Ou tivemos alguns e os reeducamos – um viva para a bênção da maturidade. De qualquer modo temos outros papéis de parede por dentro, salas trancadas, armários com fundo falso, arquivos insuspeitos, opiniões ainda não domadas, preconceitos imorríveis como o Brinquedo Assassino, traumas ridículos que não conhecemos e zombam de nós quando não estamos olhando. Contemos gente em nós que nos renega, que é nossa alma de noite, nossa alma sith, nossa alma patética, mas que enfim está dentro de nossa jurisdição e nos demanda o máximo reconhecimento de terreno, a fim de não sermos traídos num instante de doença e acordarmos encostando a faca em nossa própria garganta.

Somos esclarecidos e arejados, mas somos também filhos de uma cultura maldita que nos sussurrou tolices desde o útero, piadinhas desde a infância, poréns e todavias em cada jura de igualdade, e por isso qualquer segundo de fúria distraída pode acordar a besta que nos inocularam, e a besta pode vomitar racismos, machismos, homofobias que sinceramente condenamos, que genuinamente repelimos, mas que têm ninhos de barata em cantos de nós que ainda não dedetizamos. Somos pacifistas assumidos, firmemente contrários à pena de morte, porém um impulso de defesa a nossos amores pode trazer à tona a fera sanguinária que, convictos, desprezamos. Somos exigentes e estetas, e no entanto uma paixão encegueirante pode nos pôr sujeitos a meia dúzia de átomos de breguice que nunca adivinharíamos possuir. Odiamos pagode com todo o fígado, mas um rasgo de dor ou euforia ou bebida ou desespero nos fragiliza para o ritmo que se apossa dos quadris. Somos fofos, mas com arma na mão podemos ser monstros; somos esfuziantes, mas o retrogosto do espírito é às vezes melancólico; somos leais, mas há talvez, em nossos calabouços, um covarde egoísta que só quer salvar a pele. Não é o mesmo que ser hipócrita, porque o hipócrita sabe o que finge e administra as máscaras, que volta e meia se trombam. Não é hipocrisia termos a personalidade alfa, de eleição e construção, e ainda assim sermos surpreendidos pelo resto de nossa matilha; é humanidade apenas, que limpamente luta e se choca consigo mesma – e, ainda que deixe uma crença fazendo a guarda, não fica invulnerável ao caos particular e alheio.

Quem somos então? A média dessa batalha de múltiplos exércitos; as batatas do vencedor; o lobo que sobrevive. Noves fora, somos quem realmente queremos ser na saúde e na doença, num autocasamento diário que só dá certo com muito menos período de sombra que de luz.

Somos aquilo que nasce quando nossos cofres destrancados estão em lua de mel. 

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