quinta-feira, 13 de abril de 2017

Ninhos

Sou alma passarinha e, como tal, simultaneamente abro asas e faço ninhos. Sim, tenho a boa vontade desdobrável da adaptação e a facilidade da ternura, a curiosidade da aventura nova – mas, na mesma medida, trago a necessidade do pouso bem particular e bem meu. Dou um jeito mental de estar em casa em qualquer lugar, e em nenhum lugar vou estar tão conchegadinha como em casa.

Viagens. Se me vejo em Orlando, parece que caminho familiarmente na Barra da Tijuca, que o Castelo da Cinderela acontece de ser tão íntimo quanto um quintal de infância (nunca fui à Disney na infância, nem em seus arredores), que os sinais em inglês são tão parceiros como a língua materna e não representam ameaça nem estranheza. Se sou abençoada com Paris, num minuto sempre ali estive, abraço a irmandade com o centro do Rio, tenho a intuição profunda de que nenhum tempo será suficiente e que morrerei de saudades fixas, continuarei visitando seu cheiro em cada perfume carioca que passa na rua, estarei eternamente exilada longe de suas sacadinhas floridas. Se o prêmio é Lisboa ou Porto, ah! se ali não moraria! – que é tão macia a sensação de a língua ser a mesma (mentira, como sabemos: a gente fala é o brasileiro), é tão confortável a delícia de me perder nos sebos veeeelhos, é tão espontânea a novidade de andar sem medo, sem hora, sem cuidado, a não ser com as ladeiras enceradas e deslizantes. Toda cidade eu amo desde o caos; em toda cidade eu sou de lá.

Mas sempre serei da minha própria. Nem do bairro da vida inteira me afasto, ainda que incerto, largado e inseguro. O amor do voo não me faz cigana; eu voo e volto, e novamente me reapaixono e me enterneço, e viagem após viagem diminuo a amargura do retorno porque também somos bons, e – por que não dizer – em algumas coisas somos melhores. Fora as memórias individuais: no lugar que nos viu crescer está nosso alegre pertencimento de família, a amizade com o caixa do mercado e a menina dos congelados que pergunta pela nossa mãe, as relações que nos acolheram e nos souberam desde há séculos; estão os cinemas e casas de chá que povoaram nossos sábados (mesmo transformados em bancos, lojas, farmácias); estão as igrejas que nos batizaram, crismaram, casaram; está a única escola que tivemos, que já fechou, mas ainda nos aborda ao sonharmos ou pesadelarmos, e ainda é das maiores responsáveis pelo que somos.

Nas casas que nos pegaram nos braços, que nos trouxeram da maternidade, que nos viram brincar no jardim e andar de patinete, jazem nossos mortos queridos, e alguns não tão mortos: nossos primeiros medos da própria morte, nossos primeiros espantos com as realidades da vida, nossos amigos imaginários, devaneios com artista, pés de feijão que clandestinamente plantamos, esconderijos de bobagem que só nós conhecíamos, álbuns e cartas antigas que silenciosamente exploramos, sofrimentos da matéria que não entendíamos, livros da Agatha Christie que contrabandeávamos para dentro da Matemática odienta, filmes e músicas e novelas e Cavaleiros do Zodíaco que pouquinho a pouquinho nos construíram. Sim, em última instância estão todos e tudos em nós, não mais (ou não apenas) no lugar físico – assim como os falecidos só têm a superfície no cemitério e um túmulo bem mais autêntico na lembrança, onde realmente recebem nossas flores. Mas convenhamos: precisamos de marcos, precisamos de túmulos. Precisamos da pedra aos pés da qual se senta, chora, reza e recorda; um berço em que as memórias descansem, em que estejam seguras enquanto vivemos e voamos, em que saibamos ter a segurança de retomá-las. De nos retomarmos.

Sou adulta, feliz, coração alado, e para mim tudo é ramo e tudo é flor. Mas ninhos, ninhos mesmo, demandam o tempo de estar; demandam amor, existência e construção.

E não há lugar como lá.

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